domingo, 19 de setembro de 2010

A IMPOTÊNCIA

Sou impotente, digo-lhe, a ele, ao médico, que está do outro lado, ensimesmado no quê? na sua própria impotência?, e não param de me dizer, é que não param de me dizer, tudo está na tua cabeça, tudo está na tua cabeça, mas como mudar de cabeça? pergunto, pergunto-lhe. nunca ninguém me respondeu, sabe? e fico assim, todos os dias a sentir a impotência dentro da minha cabeça. faço o quê?, olho o médico que não me vê, corto a cabeça? é isso, corto a cabeça?? talvez assim a coisa funcionasse. sem cabeça perderia a impotência? que lhe parece? pergunto a quem não me ouve, nunca me ouvirá. Corte a cabeça, responde-me, vai ver que se cortar a cabeça terá logo uma erecção, e ri-se num riso rouco e cruel, rouco e cruel de quê? de homem potente? Mas doutor, continuo sem desconserto, posso eu ter uma erecção sendo uma mulher? e o médico de longas lunetas desapaixonadas levanta pela primeira vez os olhos do cachimbo que demoradamente enchia de tabaco. Mulher? interroga surpreso, mas não disse que era impotente. Disse e reafirmo, sou uma mulher impotente. Se você é mulher o seu problema não é a impotência, é sim a histeria, as hormonas enlouquecidas por ausência de filhos. tem filhos? pergunta. E poderia, sendo eu impotente? respondo. Estéril? riposta. Não, não, impotente, totalmente impotente, reafirmo. os olhos do médico lampejam, quase grita, Só os homens são impotentes. não a posso ajudar minha senhora, a minha especialidade é a impotência sexual não a psiquiatria. Mas tudo está ou não na cabeça? recomeço. Sim, responde-me, mas para os homens, só para os homens. Só os homens têm cabeça? inquiro. agora os berros são bem audíveis. As senhoras também têm cabeça, ainda que a senhora pareça ter perdido a sua, mas mesmo que mudasse de cabeça nunca poderia perder a sua impotência, percebe? Então é mesmo verdade que para mim que sou mulher a impotência é o destino? lágrimas percorrem-me a face. Não, não, a senhora nunca poderá é ser impotente, por não ter potência, percebe? afirma exasperado. Mas é exactamente por isso que sou impotente, quase grito de felicidade!!!
FIM

sábado, 11 de setembro de 2010

Enigmas e sapatos

- Dra. Belinha, posso mandar entrar as pessoas para a diligência das 14h?
Na sua frente sentaram-se, uma mulher na casa dos 50, vestida de forma simples, sóbria e cuidada, um homem na casa dos 30, camisa branca, cabelo um pouco comprido, e grisalho e uma outra mulher, que já devia ter entrado nos 40, desgrenhada, pouco cuidada e aparentado grande nervosismo.
- A senhora foi despedida? - perguntou à mulher desgrenhada e nervosa, que a olhava fixamente não conseguindo esconder a sua raiva.
- Despedia sim, e paguei-lhe tudo, não entendo porque estamos aqui. Eu e o meu marido - disse apontando o homem de camisa branca, que esboçava um sorriso timido -, somos pessoas sérias.

Contas feitas, e números regateados pela mesma mulher, sairam todos: a mulher na casa dos 50, empunhando o cheque, que garantia os seus direitos, o homem sorrindo, como entrara, e a primeira mulher plasmando no rosto a raiva que não conseguira nunca esconder.

Missão cumprinda, olhou o relógio, arrumou, após assinada alguma papelada, enquanto pensava que se aproximava a hora de sair rumo ao glamour de uma noite de compras VIP, e à promessa que recebera num e-mail, de uma das lojas mais prestigiadas da cidade, de ganhar um par de sapatos Louboutin,

As ruas de Lisboa fervilhavam de musica, cor, glamour e sedução.

Comiam-se gelados... bombons e marrones adoçavam as bocas .. havia maçãs, champanhe.... e muita gente bonita ... ou que havia feito todos os possiveis para o parecer....

Depois de deixar a Av. da Liberdade, e o restaurante japonês no Chiado, e quando começava a descer a Rua Garret, de repente na sua frente caminhavam um homem de camisa branca, cabelo grisalho, que gingava ao som da musica espalhada péla rua e, estratégicamente, em várias lojas.... O mesmo seguia de mão dada com uma mulher requintada, com um vestido cinzento coleante, cabelo esticado e revirado para fora, e que calçava uns Louboutins pretos, deslizando-os para que os mais conhecedores pudessem reconhecê-los nas inconfundiveis solas vermelhas....

Não teve dúvidas, o homem era o patrão da manhã.... mas a elegância da mulher que o acompanhava, contrastando com a que no mesmo dia dissera ser sua mulher, fê-la curiosa...
Seguiu-os.... por entre música, pessoas, e copos de bebidas várias que teimavam oferecer-lhe, dificultando-lhe a missão....perdeu-os de vista quando curvaram a esquina da Rua Garret com a Rua Nova do Almada...

Os saltos demasiado altos e o desgaste da calçada portuguesa não a deixaram arriscar a queda....

Pelo meio ainda lhe ofereceram um porta chaves... que não teve tempo de agradecer.... prosseguiu... e ainda vislumbrou o homem gingando numas calças pretas justas, e na camisa branca que sobressaia na noite e nas luzes que piscavam em várias lojas e na rua..... a mulher segurava-lhe na mão e deslizava sobre os 15cm de salto e as solas vermelhas....

- Belinha, Belinha... tu já viste? Abriu aqui uma loja « Custo Barcelona »!!!

As luzes e a cor rosa do nome que cintilavam, empurraram-na para dentro da loja e para a magia das cores em que se deixou perder....

Depois foi envolvida por um casaco misto de flores e padrões geométricos.... as cores as luzes... a musica e um copo de vodka que lhe ofereceram.... transportaram-na para outra dimensão.....

Momentos depois, descia a Rua Nova do Almada... o homem de camisa branca, cabelo grisalho, segurava-lhe na mão, enquanto deslizava sobre os sapatos pretos de laço e sola vermelha....nas ruas não havia ninguém.... apenas a lua iluminava a noite e no silêncio sobressaía a musica que ambos trauteavam « I want to know what love is ... »


- Sra. D. Dra. Belinha, são 9h, hoje não vai trabalhar?

Deu um salto do sofá onde, já tarde, quando chegou a casa, adormecera....
Sobre o sofá, ao seu lado, estava pousado um casaco « Custo Barcelona » com padrão misto de flores e desenhos geométricos....

- Sra. Dra. D. Belinha, enquanto dormia, veio cá um senhor, de camisa branca, entregar estes sapatos de sola vermelha.....

-E não disse nada, Alexandra?- perguntou.
- Apenas que pode ficar com eles....

Engoliu à pressa o iogurte e a bica.... saiu rumo ao novo dia....

No rádio o Markl reabilitava um antigo « Anuncio de jornal », em que uma moça de voz melada.... narrava as dificuldades de arranjar um trabalho de secretária ...honesto ....

Secretárias, trabalho... tudo isso a esperava....

Para trás deixára enigmas, um misterioso homem de camisa branca.... uns sapatos .... e luzes vagas que não sabia se de facto vira cintilar....

- Dra. Belinha, está lá fora uma senhora, parece ser a de ontem, a da empregada doméstica, mas hoje tem outro penteado, quer falar com a Dra.... posso mandar entrar?

o discreto charme do comunismo


a avenida da liberdade - só o nome já o indicia - é local de fortes contrastes citadinos. sempre me senti bem no meio do paradoxo da avenida - um fim de tarde, o trânsito caótico e a serena calma dos cafés e jardins. senhoras da burguesia lançam o seu charme trabalhado, homens de negócios passam indiferentes à beleza do fim do dia e estrangeiros de sandálias e mapas descem com lentidão de turistas. no crepúsculo do dia todos se cruzam no antigo passeio público de lisboa. vêem-se as últimas tendências nas grande lojas e a moda das lojas orientais nas prostitutas que passam. e não há manifestação que se preze que não recorra à avenida. a polícia já tem uma escala montada para numerar a multidão - se enche até à rua das pretas, são já uns bons milhares.

numa destas tardes ao subir o passeio da avenida verifico que à porta de um seu lugar icónico - a sede do partido comunista português, entrincheirada entre diversos bastiões do capitalismo (atrever-me-ia a dizer "selvagem") - um pequeno grupo ria, falava alto e emanava boa disposição. quando me aproximo constato com surpresa que um dos membros do grupo era uma senhora loura, muito branca, maquilhada e esticada, garrida num belo vestido azul eléctrico e que do alto dos seus saltos agulha compensados argumentava veementemente. quando me aproximo apercebo-me de que se tratava de Lili Caneças, vestida em jeito de gala, e que os seus interlocutores eram os porteiros da sede do partido. riam a bom rir. reviviam, seguramente, os bons velhos tempos na clandestinidade…

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

When the day is done.

não, minha mãe, eu vou (fui) mesmo dançar.



ainda estou a digerir.  a identificação é uma armadilha estética. o nó no estômago ainda aqui está. por razões  óbvias, tu, anja intermitente, vais, por certo, apreciar o filme  non, ma fille, tu n´iras pas danser. o enxerto anacrónico da história da mulher que procura o homem que lhe aguente o ritmo de dança por 12 horas seguidas é uma porta celta e pitoresca por onde se escapa uma gargalhada libertadora.  a relação da mãe divorciada com os dois filhos é um anzol  óbvio e doloroso  quando comparado com a rede fininha  em que o realizador nos  enreda discretamente o olhar posto na relação entre a mãe divorciada na casa dos trinta avançados e a mãe/avó soixante-huitard conformada com o seu casamento de juventude.  a ver, acho eu. 

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

bem-vindas

queridos seios, farta das arrumações na nova casa, sentei-me, ainda de rolos na cabeça, a saborear uma cerveja, a que se seguiram outras. a decoração é moderninha e minimalista a apelar a bebidas brancas mais destiladas. mas eu sou como as noivas do minho que trocam os vestidos pretos pelo branco nupcial. teimo em manter as socas pretas por debaixo dos fru-frus de chantilly. enquanto demoram, ouço um velho disco de vinil já meio roufenho na aparelhagem novinha em folha a apelar a saudosismos e purismos serôdios. a nuvem de tabaco e os eflúvios alcoólicos passam já, descansem, graças ao ambientador-cheiro-a-figueira comprado ali na loja zen da esquina e que traz à boca um sabor a terra seca  e à memória residual um título fugitivo de rodapé de telejornal: 90 metros já escavados no resgate dos mineiros subterrados a 700 metros de profundidade. o chico (lindo, lindo) faz as honras da casa a cantar:
Comunico oficialmente
Que há lugar na minha mesa
Pode ser que você venha por mero favor,
Ou venha coberta de amor
Seja lá como for, venha sorrindo
Ah, bem-vinda, bem-vinda, bem-vinda
Que o luar está chamando,
Que os jardins estão florindo
Que eu estou sozinho
Cheio de anseio e de esperança,
Comunico a toda gente
Que há lugar na minha dança
Pode ser que você venha morar por aqui,
Ou venha pra se despedir
Não faz mal pode vir até mentindo
Ah, bem-vinda, bem-vinda, bem-vinda
Que o meu pinho está chorando,
Que o meu samba está pedindo
Que eu estou sozinho
Vem iluminar meu quarto escuro,
Vem entrando com o ar puro
Todo novo da manhã
Lá vem a minha estrela madrugada,
Vem a minha namorada
Vem amada, vem urgente, vem irmã
Bem-vinda, bem-vinda, bem-vinda
Que essa aurora está custando,
Que a cidade está dormindo
Que eu estou sozinho...